Na capital baiana, a mobilidade urbana esbarra em uma barreira silenciosa: a tarifa do transporte público. Para quase 35% da população de Salvador — que vive abaixo da linha de pobreza — o preço para se locomover diariamente não é apenas um custo, é uma exclusão. Enquanto o ônibus poderia ser ponte para trabalho, acesso ao lazer ou busca por novas oportunidades, ele se transforma em obstáculo.
O peso da tarifa sobre quem menos tem
Dados recentes do IBGE mostram que cerca de 1 milhão de pessoas em Salvador vivem em condição de pobreza, um terço da cidade. Já a tarifa vigente (por volta de R$ 5,60 por viagem) torna-se um gasto muito acima das possibilidades de quem ganha pouco. O custo mensal só com ida e volta ao trabalho (22 dias úteis) soma aproximadamente R$ 246 — o que representa uma fatia gigantesca da renda de quem vive na extrema pobreza.
O resultado: menos deslocamentos, menos acesso, mais isolamento.

A vida interrompida pela falta de transporte acessível
Maria Eduarda, 32 anos, mora no subúrbio de Salvador e trabalha como auxiliar de limpeza. Para ela, “pagar duas passagens por dia” virou motivo para desistir de tentar um segundo emprego. “Se eu aceito algo mais longe, já tenho que descontar do que vou ganhar só para chegar lá. Nem sempre vale”.
(Este relato é representativo de muitos – entrevistas em campo mostram que a tarifa e má qualidade do serviço fazem com que moradores de regiões mais periféricas deixem de buscar emprego, desistam de estudar ou se afastem ainda mais das áreas centrais da cidade.)

A fratura urbana: quem vive na periferia, sofre mais
No mapa da mobilidade, a distância conta: bairros periféricos de Salvador têm menos linhas diretas, menos horários, ônibus mais lotados ou atrasados. E para quem não consegue deslocamento automático, a tarifa é o selo que diz: “você não pertence”. A convivência com transporte caro + serviço precário agrava o ciclo da pobreza: sem uma via de entrada fácil para o trabalho ou o lazer, as oportunidades somem.
Uma luz: o projeto Tarifa Zero em discussão
Na Câmara Municipal de Salvador já tramita proposta para instituir a tarifa zero no transporte público. Em março de 2025, uma sessão debateu o tema com representantes da sociedade civil que apresentaram anteprojetos de lei e estudos técnicos.
A ideia central: transformar o transporte coletivo em direito real, e não privilégio de quem pode pagar.
Por que a Tarifa Zero pode alterar o jogo
Redução de barreiras econômicas: quem está desempregado ou no mercado informal poderia se deslocar sem custo proibitivo, ampliando as chances de inserir-se no trabalho.
Melhoria da mobilidade nas áreas periféricas: com demanda maior induzida, há justificativa para ampliar linhas, horários e cobertura.
Igualdade social: transporte gratuito iguala — ao menos em parte — quem vive em áreas centrais e quem vive à margem.
Estímulo à economia local: deslocamentos para lazer, estudo, sair com filhos — que hoje são cortados para economizar — se tornam possíveis.
Esse plano não é apenas técnico: é profundamente humano.

Os obstáculos reais — e por que não podemos esperar
Apesar das boas intenções, a Prefeitura da cidade declarou em outubro de 2025 que considera inviável, no momento, adotar a tarifa zero.
Argumentos usados: custo elevado do sistema de transporte (mais de R$ 1 bilhão/ano segundo estimativas locais), orçamento limitado, necessidade de manter investimento em saúde e educação.
Mas para a população excluída, “inviável” significa “continuamos presos”.
Uma cidade que escolhe: inclusão ou abandono
Em Salvador, onde quase um terço da população é pobre, a mobilidade importa. Não se trata apenas de ônibus: trata-se do direito de buscar emprego, estudar, viver. Quando o transporte custa, quem menos tem paga a conta dobrada — menos mobilidade, menos acesso, menos futuro.
O projeto da Tarifa Zero não é mágica — exige financiamento, planejamento, diálogo entre governo, prefeitura e sociedade. Mas é uma proposta simbólica e prática: a cidade pode dizer àqueles que vivem à margem: “Você tem vez aqui”.
Caso contrário, a desigualdade seguirá sendo circular: quem não pode se deslocar, permanece excluído.
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